rastro do homem popular, percorrendo seu caminho, com o objetivo de aprender
com ele os caminhos para a feitura de seu meio de trabalho, ou o seu facilitador.
Marepe fala de suas influências artísticas, de Marcel Duchamp e de Lygia Clark, e
coloca, junto a estes “bens institucionalizados”, os trabalhadores que servem de
foco para seus trabalhos derivados do ambiente urbano, relacionado ao mercado
informal:
(...) mas também existem umas figuras que eu passei muito tempo
observando, que são os vendedores ambulantes, os objetos, os
utensílios do trabalhado deles. Isso faz parte do meu trabalho, que eu
também devo a eles (MAREPE, 2002, s/p).
Essas relações com os ambulantes são bastante contundentes nas bancas
de vendedores (Figura 56) e estão implícitas nas trouxas. O depoimento de Lisette
Lagnado sobre as bancas aponta uma vertente em relação ao processo criativo de
Marepe:
Semana passada, Laura me levou à Feira de São Cristóvão, no Rio de
Janeiro, e foi uma chegada na terra. Continuo chegando na “ciência do
concreto” para diminuir minha distância com tuas bancas de camelô,
exposta na mostra do Antarctica Artes com a Folha, em 1996. As bases
da discussão acerca do transporte de valores já estavam lançadas,
naquela época por intermédio do comercio informal, na imagem dos
ambulantes de rua. De que modo as barracas dos ambulantes passam a
funcionar dentro de um pavilhão de arte, do circuito institucional? Seu
procedimento não ficou devidamente explicitado, gerando uma série de
ambigüidades. Mais uma vez, “apropriação” seria um conceito
inadequado; proponho “edificar”. Você fotografa a cena, seus elementos
constitutivos, observa assiduamente detalhes, reinventa o método do
outro refazendo aquilo que foi feito sob necessidade. Atua como um
pesquisador que vasculha céus a fim de entender o sentido das coisas,
onde comprar determinada madeira, onde encontrar os rudimentos que
faltam. Enfim trata-se de andar na pegada do homem da rua, rastrear o
caminho percorrido por um trabalhador até erguer sua própria barraca,
viver um conjunto de gestos, a casa, as ações e o corpo do outro
(GALERIA LUISA STRINA, 2002).
As bancas não operam no mesmo sentido que os ready mades (Figura 57),
conclui Marepe. Ele fala desta diferença apontando que Marcel Duchamp, ao
pegar um objeto industrializado,
está escolhendo algo que passou pela mão do design, de um ser humano, mas que depois a feitura deixa de ser do humano e passa a ser da máquina, sendo um objeto industrial, de produção em série. O artista, percebendo a distinção de sua produção, revê o procedimento de Duchamp e retraça um outro conceito, em homenagem ao artista francês, o de “nécessaire”. O artista explica, “eu tirei a palavra ready made e coloquei nécessaire. Quis fazer uma homenagem, porque Duchamp era francês” (MAREPE, 2002, s/p). E recoloca um outro objetivo com o deslocamento do nome, pois, acaba por definir um outro conceito que estaria mais ligado à necessidade, do necessário, do necessitado, então a presença da mão humana, a presença do homem ali. O objeto em si revela muito do que está em volta dele”, reflete o artista (MAREPE, 2002, s/p). Essas bancas que Marepe edifica para o meio artístico refletem, entre tantas outras, as soluções que o trabalhador informal cria para melhor
comercializar seus produtos. Priscila Lolata fala, no artigo “Apropriação: do ready
made de Duchamp ao nécessaire de Marepe”, sobre a dinâmica da indústria capitalista e seus agregados (moda, publicidade etc), ou seja, às necessidades de consumo do ser humano e as necessidades para a sobrevivência, que se aproveita das necessidades anterior:
A necessidade incomensurável de criação das necessidades através da
fabricação de produtos e objetos em escala muito maior às que
realmente necessitamos. Ao mesmo tempo, estamos diante da
necessidade de viver, comer, divertir-se, o que leva um número enorme
de “cidadãos” a criar situações para reverter outras situações
desfavoráveis: a do desemprego e da falta de dinheiro e oportunidades
(in CADERNOS MAV-EBA-UFBA, 2004, p.63).
Essa análise revela um fator importante para a compreensão do trabalho de
Marepe: a relação com o mundo a ser percebido. “Mas o objeto visto é feito de
fragmentos de matéria e os pontos do espaço são exteriores uns aos outros. Um
dado perceptivo isolado é inconcebível, se ao menos fazemos a experiência
mental de percebê-lo”, coloca Merleau-Ponty (1999, p.25).
A escolha do material não se dá por questões meramente estéticas. A essência essas barracas, ainda que não sejam as barracas que estavam na rua, o conteúdo impregnado nelas, revela o seu contexto, os “fantasmas” da rua também vão para espaço institucional através do ato de Marepe, da ação, desde sua observação do mundo até a escolha do objeto. E é nessa absorção do contexto em que se encontra o objeto escolhido que reside o conteúdo teórico dos trabalhos. É difícil ver uma banca sem remetê-la ao seu local tradicional, à condição de seu dono e, assim, sucessivamente.
(...) por que olhar o objeto é entranhar-se nele, e porque os objetos
formam um sistema em que um não pode se mostrar sem esconder
outros. Mais precisamente, o horizonte interior de um objeto não pode se
tornar objeto sem que os objetos circundantes se tornem horizonte (...)
(ibidem, p.104).
O material precário44 está muito presente nessas bancas. A relação do
artista com a desmaterialização do objeto está ligada a esta precariedade, e aos
seus materiais. Uma de suas bancas, a “Banca de Bijuterias” (1996-1998) (Figura
58), participou, em 1997, do Salão do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,
e, em 2002, foi exposta na Galeria ACBEU de Salvador, quando se notava a falta
de algumas peças que compunham a banca, o trabalho de arte. O artista relata
que as pessoas pegavam escondidas as bijuterias. Furto? A despreocupação do
artista com o fato remete ao texto “Posição e programa”, de Hélio Oiticica, quando
ele trata do “Programa Ambiental”. Guardando as devidas situações e contextos,
há uma relação entre a Banca de Bijuterias (1996-1998) de Marepe e determinado
“Bólide” de Oiticica, quando o segundo fala da experiência do trabalho ter partes
furtadas, cujo elemento é consumido:
Bólide composto de uma cesta cheia de ovos – estes são perecíveis
(ovos reais) logo têm de ser consumidos para a substituição – é, digo eu,
segundo Mário Pedrosa, um escárnio ao chamado comércio de arte
criado pelas galerias: aqui, o elemento que compõe a obra é vendido a
preço de custo, preço acessível a qualquer pessoa (há ainda a simpática
possibilidade de se poder roubar um ou mais ovos às escondidas, o que
torna maior o escárnio) (in CATÁLOGO HELIO OITICICA, 1998, p.104).
A dicotomia do objeto de arte e de seu valor de origem, está presente no
trabalho de Marepe. A participação do expectador, no caso da “Banca de
Bijuterias”, acontece também via contravenção lícita, já que o artista não vê esse
“furto” de forma negativa. Uma ação que brinca com a aura da “obra de arte” no
cubo branco. Essa banca ainda é toda forrada de veludo vermelho, uma provável
forma de valorizar as peças douradas imitando jóias de ouro, e gera ainda uma
relação barroca, pela riqueza dos detalhes e pela relação do dourado, comum nas
inúmeras igrejas barrocas de Salvador, e o vermelho, sempre presente nos ornamentos e adereços religiosos desse estilo.
Para ter acesso à dissertação na íntegra, é só clicar aqui!
ou procurar:
MAREPE: MEMÓRIA, DEVANEIO E COTIDIANO NA ARTE CONTEMPORÂNEA DA BAHIA
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